Nenhuma organização, pública ou privada, gera bons resultados sem uma governança eficiente. Por isso, ela é um elemento imprescindível também para a evolução digital de governos. De forma simplificada, a governança representa uma estrutura de fatores necessários para a gestão das instituições e implementação de seus objetivos.
Ao analisar diferentes estratégias de governo digital, foi possível classificar quatro componentes fundamentais de governança:
organizacional
estratégico
regulação
método
Os objetivos de cada componente de governança são direcionar, monitorar e avaliar a gestão, de modo a alcançar resultados definidos pelos centros de autoridade, por meio das regras por eles criadas.
Governança é um elemento estruturante para o governo digital, tendo precedência sobre projetos e iniciativas. Somente a partir de uma governança bem desenhada é que surgem os demais elementos, construídos com direção e sentido bem definidos.
veja exemplosUm dos primeiros componentes da governança (digital) a ser definido é o organizacional. Ele é o resultado da distribuição de autoridade entre os atores responsáveis por desenhar e implementar a transformação digital, assim como os encarregados dos deveres de observância das regras criadas. É, portanto, o elemento que define quem edita as regras do jogo, quem as cumpre e como todos devem viver sob as regras de transparência e accountability. Exerce, assim, influência sobre o desenho e o desenvolvimento de cada um dos demais componentes.
O caminho de evolução digital de uma instituição, quando trilhado com sucesso, segue uma estratégia digital. A estratégia estabelece uma visão de chegada e de partida, assim como a organização de iniciativas e resultados esperados. Para isso, a função primordial do componente estratégico é de conferir racionalidade, harmonia e sistematicidade às ações de transformação digital, direcionando os atores envolvidos. A estratégia necessita, e também decorre, do componente organizacional da governança. Normalmente, é comunicada na forma de um ou mais planos.
PlanosÉ o componente que contém mecanismos voltados à definição de padrões, poderes, deveres e processos que vinculam os atores para a implementação das ações da estratégia de governo digital.
Ao tratar de transformação digital é imprescindível que o componente regulatório siga a diretriz de leveza regulatória, apostando sempre em instrumentos flexíveis e adaptativos, como precedentes, melhores práticas, análises de políticas públicas e manuais técnicos. Regras formais e estáticas devem ser criadas apenas em último caso.
Leveza e eficiência regulatória também exigem o uso de delegação normativa para detalhes técnicos – já que quanto maior e mais detalhada em uma só norma, maior o risco de rigidez. Com leveza e flexibilidade, também se garante espaço para inovação e para experimentação, utilizando por exemplo o sandbox regulatório.
Há aqui uma forte interseção com o componente de método da governança, já que os melhores governos digitais tratam normas de maneira experimental. Para isso, devem:
_ ser adaptáveis e baseadas em evidências;
_ computar custos e benefícios;
_ possuir premissas de impacto articuladas e monitoradas;
_ ser submetidas a revisões periódicas.
Além disso, as intervenções regulatórias são definidas seguindo as diretrizes do design. Isto é, devem levar em conta a realidade (e necessidade) dos destinatários das normas.
veja exemplosA boa governança para a transformação e evolução digital das instituições precisa incorporar mecanismos de método. E nisso há uma interseção com o componente regulatório da governança, já que vários métodos e processos de trabalho são definidos, documentados e difundidos sob a forma de normas ou padrões técnicos (ainda que com base em instrumentos normativos mais leves, flexíveis e adaptativos - e.g., design standards, diretrizes para experimentação etc.).
Métodos de design e experimentação são imprescindíveis para garantir resultados de maior impacto e menor custo, tanto no nível dos planos e projetos, quanto no de decisões concretas, como atos administrativos e de controle.
Por fim, um outro grupo de componentes de método da governança é formado pela motivação analítica (baseada em evidências), pelos processos de participação pública e pela avaliação adaptativa de impactos. Todos são exemplos dos valores de transparência, accountability e eficiência – que dialogam com princípios de governo aberto.
veja exemplosdesign e experimentação
métodos ágeis
comunicação assíncrona e trabalho focado
avaliação de impactos
A boa governança para a transformação e evolução digital de instituições de governo enfrenta alguns desafios e dilemas.
Por exemplo, há vantagens e desvantagens em se tratar a agenda de governo digital – e, por conseguinte, sua estratégia e planos – como distinta das demais:
empodera para ação uma equipe com visão e habilidades alinhadas de início para a definição e implementação de uma estratégia digital
aumenta o risco de sobreposições de estruturas e mecanismos de governança
Além disso, a força da tradição (ou dependência de trajetória) nas instituições de governo pode levar ao uso excessivo e de forma inflexível do mecanismo regulatório, dificultando a inovação e a implementação ágil e de sucesso da estratégia.
A falta de hábito de uso de instrumentos flexíveis pode dar a falsa impressão de que para tudo é preciso uma regra, concebida no formato mais tradicional.
No ponto de vista organizacional, também a previsão e uso excessivo de corpos decisórios complexos pode levar a processos de decisão burocratizados e lentos – mais um fator na contramão do dinamismo que a área da transformação digital exige.
Por fim, ainda quanto ao componente organizacional, uma visão excessivamente centralizada pode criar processos decisórios que vêm de cima para baixo na hierarquia, prejudicando a formação de redes, a legitimidade da estratégia digital e criando incentivos desalinhados entre os agentes necessários para a implementação.
veja exemplosDados ocupam um papel central na transformação e no governo digital - afinal, estão no próprio nome do conceito (“digital”). Por isso, são elementos estruturantes para tantas medidas e iniciativas das estratégias digitais.
Os dados são insumos para algumas funções estruturantes, como:
padronização de estruturação, permitindo interoperabilidade e modularização de soluções digitais;
abertura, produzindo os atributos de governos abertos - com transparência, accountability e inovação aberta;
treinamento de modelos de inteligência artificial, a partir da quantidade e ubiquidade dos dados (favorecidas por novas tecnologias). Pode levar à automação de providências e rapidez na produção de conhecimento útil (inteligência);
monitoramento da regulação e de programas de governo e serviços públicos para a contínua avaliação de seus impactos, levando a ajustes sempre que preciso;
tomada e controle de decisões com motivação analítica, baseadas em evidências.
A tecnologia é o elemento mais conhecido da transformação digital, visto que seu uso permeia todo esse processo. Em uma situação ideal, proporciona ao usuário maior eficiência ao reduzir o trabalho repetitivo e burocrático, possibilitando mais tempo para a criatividade e análise crítica.
As tecnologias que fazem parte da transformação digital podem ser várias – das mais simples, como a digitalização de um documento; às mais ambiciosas, como a criação de serviços públicos no metaverso.
O dilema que a tecnologia traz se mostra na necessidade de acompanhar as tendências, mas não se deixar levar pelo ciclo de novidades da moda, de forma acrítica. Sem entender o problema que a tecnologia pode resolver e quem são os usuários que dela irão fazer uso, adquirir novas ferramentas que estão em voga pode levar ao desperdício de recursos.
A discussão sobre transformação digital vai além da tecnologia e também envolve as pessoas. As barreiras à inovação na cultura organizacional são uma dificuldade esperada do processo e é por isso que o estímulo à cocriação tem importância para o sucesso de qualquer estratégia.
Afinal, os serviços públicos (inclusive os digitais) precisam ser construídos tanto para servidores da instituição quanto para os destinatários de suas ações e serviços.
Sem engajamento interno, não há implementação de sucesso. É possível indicar que estratégias que mudam a cultura, difundem o método, e estimulam a implementação de ações são as que rendem melhores resultados. Para isso contam com mecanismos para fortalecimento da participação, por exemplo incluindo reconhecimentos e premiações.
A experimentação necessária para a condução de uma estratégia digital passa por dar “permissão para errar” e aprender com o erro. A incorporação dessa mentalidade ao dia a dia incentiva a adaptação e o aprendizado rápidos. A existência de prêmios e divulgação dos resultados também é importante para a construção de rede, visto que estimula troca sobre melhores práticas e lições aprendidas.
No contexto das instituições de governo e controle, a inovação aberta parte do princípio de que é possível descentralizar a geração de respostas para seus desafios e a construção das soluções. A inovação aberta surge como oportunidade quando não há clareza sobre a resposta, ou resposta pronta no mercado.
A inovação aberta traz maior liberdade para a customização de soluções, visto que são desenvolvidas em resposta às especificidades do desafio. Esta vantagem, porém, deve considerar o máximo reaproveitamento das soluções, com possíveis táticas de compartilhamento de custos com instituições interessadas e que possuam o mesmo desafio.
Para que ocorra, deve a inovação aberta partir de mecanismos do componente de método da governança, desde a prospecção e definição do desafio em questão. Para isso, a organização precisa conduzir processo iterativo e experimental, contando com:
A estratégia digital pode prever a criação e manutenção de um catálogo de desafios. Esse mapeamento pode ser compartilhado entre instituições que enfrentam problemas similares e até construído de forma conjunta.
A rigidez das estruturas de governo fez com que a inovação aberta crescesse em popularidade em diversos órgãos públicos e se tornasse uma peça importante das estratégias de transformação digital. Em diversas esferas do setor público pelo mundo, também funciona como incentivador do desenvolvimento econômico. Ao seguir um processo bem desenhado, é uma ferramenta que permite embasar a contratação pública de soluções inovadoras.
veja exemplosDesde a era anterior, da governança eletrônica, surgiram ferramentas digitais – notadamente web – desenhadas para promover ganhos de eficiência em processos de trabalho e serviços transacionais do governo relacionados a compras públicas. É o caso dos portais online de compras públicas – permitindo compartilhamento (e ganhos em escala); interação mais dinâmica e menos custosa, assim como melhor comunicação entre partes interessadas; maior alcance e melhores condições de preço.
Nas estratégias digitais, as iniciativas de transformação digital de compras públicas ganham destaque e dão um passo além. Em primeiro lugar, porque compras de software (até em módulos - v. próxima seção) ou contratação de prestação de serviços digitais passam a ser objeto de portais online de compras públicas. Mas, em especial, porque essas contratações são associadas aos métodos de inovação, atingindo dois objetivos:
lidar com a evolução acelerada da tecnologia da informação
garantir eficiência de compras e implementação das estratégias digitais
É o que forma os chamados marketplaces digitais.
O que torna o marketplace especial é a flexibilização e o dinamismo possíveis para compras de mercadorias e serviços digitais. Por um lado, o marketplace incorpora oportunidades de experimentação e testes (p.e., provas de conceito). Por outro, também permite liberdade para que os compradores detalhem apenas a necessidade e o resultado esperado; e não necessariamente a especificação da solução. Em marketplaces mais evoluídos, há oportunidades para vendedores apresentarem seus serviços e mercadorias; ou até mesmo links para plataformas de reuso de soluções já existentes no governo (evitando-se compras desnecessárias).
Portanto, com o marketplace, abre-se oportunidade para a inovação e a cocriação de soluções, sendo, assim, programa e plataforma próximos a iniciativas de inovação aberta. O divisor que orienta se uma necessidade digital será solucionada via marketplace ou inovação aberta não é, nem precisa ser, exato. A resposta depende, por exemplo, do grau de incerteza sobre a existência de solução no mercado e a capacidade de imaginar e especificar um caminho possível de solução.
veja exemplosAs estratégias digitais têm incentivado a evolução da visão de governança para a percepção e o funcionamento de governos como plataformas. Para isso, as estratégias preveem o seguinte:
desenvolvimento e compartilhamento em repositórios dinâmicos
(re)combinação de módulos de soluções digitais
(re)combinação de dados padronizados e estruturados
Os módulos de soluções digitais (também chamados de serviços digitais ou microsserviços) são blocos de funcionalidades que, dada a sua natureza, podem ser agrupados de formas diversas para formar outros módulos ou compor sistemas. Cada módulo é autossuficiente (tem sua própria linguagem, sem interferir com a utilizada pelos demais) e interoperável – ou seja, conectável com dados, outros módulos e sistemas por APIs.
Os módulos podem conter uma funcionalidade ou um grupo delas. As funcionalidades podem corresponder a processos de trabalho internos, administrativos, das instituições. Ou então à produção de inteligência para um serviço da ponta (nas instituições de controle, por exemplo, uma trilha específica de auditoria).
Módulos têm se tornado um elemento essencial das estratégias digitais em função da redução de custo que permitem. Em primeiro lugar, possibilitam fácil reuso e combinação para a construção de novos sistemas ou módulos. Em função de sua interoperabilidade e autossuficiência, não precisam ser reconstruídos para que venham a funcionar em algum sistema ou para a construção de outros módulos.
Com os módulos autossuficientes, eliminam-se problemas de compatibilidade entre linguagens de programação e bancos de dados – desafio que existe para o compartilhamento de sistemas mais completos.
Com a divisão dos esforços para o desenvolvimento e aquisição de cada módulo, evita-se retrabalho e desperdício de recursos ao permitir a otimização da força de desenvolvimento – acelerando assim a transformação digital. Além disso, devolve-se a sustentabilidade do desenvolvimento por aqueles que mais entendem de governo – seus próprios agentes.
Já a padronização, estruturação e o acesso a dados são essenciais para outras finalidades além da transparência ativa e o valor da accountability (previstos na ideia de governo aberto). Sem eles, a tática de modularização de funcionalidades (ou mesmo sistemas) não funcionaria. Para que a tática tenha êxito e garanta a interoperabilidade e o desempenho adequado dos módulos, é preciso que os dados sejam abertos, e incluam identificação e estrutura padronizadas em documentação acessível e clara.
Funções essenciais da abertura de dados padronizados e estruturados, além de garantir a modularização e o funcionamento de sistemas:
1. promoção de accountability (governo aberto por meio da transparência ativa);
2. viabilização de programas de inovação aberta;
3. fomento à economia digital e ao desenvolvimento de soluções de interesse público-privado;
4. boa governança (evitando-se várias versões da mesma informação).
Tanto módulos de funcionalidades digitais quanto bases de dados padronizadas e estruturadas se fazem acessíveis com o uso de conectores – as famosas APIs. Nas estratégias digitais avançadas, repositórios online reúnem APIs para interoperabilidade de módulos e consumo de dados.
Os repositórios podem, ainda, ter acesso parcial ao setor privado; e suas APIs devem ser bem documentadas para fácil uso.
Em estratégias que fazem uso de repositórios incrementais, pode haver um processo organizado e participativo para a priorização de novos módulos (a serem desenvolvidos ou adquiridos) ou para a padronização e construção de API de acesso a bases de dados específicas.
Nesses casos – revelando outra interseção com o elemento de método da governança – o valor para o usuário final é o critério essencial para a priorização. Além de participação e diálogo com os potenciais usuários, a abertura e padronização de dados e o desenvolvimento ou contratação de novos módulos pode seguir métodos ágeis – incluindo a possibilidade de testes pelo usuário final.
Por fim, os repositórios podem ser conectados com portais e programas de dados abertos e de compras públicas. Isso incentiva o reuso antes da aquisição de uma funcionalidade ou base de dados já existente no governo.
veja exemplosA melhora dos serviços do governo por meio da transformação digital encontra eco em várias estratégias, na medida em que enfatizam o maior valor entregue quando o foco são as reais necessidades dos usuários, sejam eles:
internos
servidores públicos
externos
cidadãos, empresas e sociedade civil
No contexto de uma sociedade cada vez mais habituada à tecnologia e ao uso diário de aplicativos e serviços privados, desenvolvidos com forte investimento na experiência do usuário. Um desafio para o setor público é atender a essa exigência.
A partir da mentalidade advinda do design, é necessário considerar que não deve ser demandado do usuário saber a qual órgão público o serviço procurado faz parte. Assim, a criação de um ponto centralizado de acesso facilita a busca, principalmente quando os serviços também estão estruturados em eventos da vida (life events).
Este esforço é a base para o desenvolvimento de serviços integrados, cujo principal desafio está na governança e cooperação entre os níveis e setores de governo, demandando a revisão das regulações para colaboração digital e compartilhamento de dados. Resolver tal desafio também é premissa para garantir o “princípio de uma única vez” (once-only principle), que significa solicitar informações ao usuário uma única vez, melhorando significativamente a experiência digital.
veja exemplos